Do saudoso Prof. Dr. Afonso Maria Ligório Soares.
Sociedades extremamente injustas, genocidas, escravocratas (como a nossa, por exemplo) exigem dos mais oprimidos a flexibilidade de fazer concessões à beira do abismo, da feijoada ao samba, das benzeções às missas exigidas pelos orixás. J. L. Segundo dizia que “mesmo as sociedades injustas constituem, no longo prazo, ecologias, isto é, sistemas sociais de equilíbrio complexo. E hão de ser mudadas como tais”. E insistia: “Toda tentativa unilateral de grandes proporções, por melhor que seja sua finalidade, termina por destruir de alguma forma a relação básica entre o ser humano e seu ambiente (biológico ou social)”. Em miúdos: se eu pretender transformar essas sociedades a todo custo, sem levar em conta a devida dialética dos mecanismos que as articulam, terminarei por causar um estrago ainda maior.
Meu pai me contava que, quando meninos (na década de 20 do século passado), ele e seus irmãos (tio Eli, tio Tarcísio…) corriam atrás das procissões da igreja de Lagoa Dourada (MG), de olho na inscrição do pálio vermelho protetor do Santíssimo, que trazia bordado o acrônimo S.P.Q.R. Para os garotos, numa versão teológica inculturada avant la lettre, aquilo significava Sopa-Pão-Queijo-Rapadura.
Quem estava errado ali: os padres, que desfilavam com adereços que remontavam à Roma antiga (a tradução literal do acrônimo de Senatus Populus que Romanus é o Senado E o Povo Romano) ou a garotada, que explicitava, numa sociedade de pobreza e injustiça social, sua ideia de paraíso? Ademais, o que tem a ver com o Evangelho de Jesus essa frase inscrita nos estandartes das legiões romanas, e que era o nome oficial do Império Romano? Ponto para o sincretismo dos meninos; zero para o sincretismo dos padres.
Outra: segundo as recordações de meu pai, nas procissões da sexta-feira santa e similares, o povo cantava com muita animação as rezas. Mas como ninguém entendia patavinas de latim, iam inventando frases que fizessem algum sentido. Por exemplo, as beatas puxavam: “Terra come os zoio de noooois” e todos: “Amém”. Enquanto isso, lá no começo da fila, o padre estava dizendo, sozinho, a frase original: “Te rogamus, exaudi nos” [Te pedimos, atende-nos!]. Quem tava certo? Numa procissão que leva Jesus morto pra tumba, faz todo sentido a gente se lembrar de que, no final, a terra há de comer tudo, até os zoio de nós! Então, se liga enquanto é tempo.
Sincretismo é veneno, é droga, é fármaco. Na medida, cura; desmedido, mata. Que nem água pedida em dança da chuva. Que nem amor que surge do nada por mulher que do nada veio. Que nem santidade de teresas-dávilas fincada por anjo em devaneio. Sincretismo é a vida acontecendo. É a revelação de Deus em ato, dizendo-nos primeiramente não Quem ele é, mas quem nós poderíamos ser um dia. Sincretismo é o que vai sendo feito enquanto tateamos pelo Quem-das-coisas.
Se Deus é Amor, por que apelar aos intermediários, santos e virgens-marias? Se o sacrifício de Cristo já quitou a dívida, por que precisa repeti-lo em todas as missas – sadismo nosso ou masoquismo dele? Se Deus já sabe do que precisamos por que precisa pedir? Se, para o budista, deuses não há, pra quem ele escreve aqueles bilhetes pendurados ao vento? Se o corpo ressuscitado será diferente deste, o que o muçulmano acha que vai fazer com tanta virgem no paraíso – jogar paciência? Se o padre católico não sabe tocar nem no corpo de uma mulher, como se sente tão seguro em tocar no corpo de Cristo? Se Deus queria mesmo que todos lêssemos a Bíblia, por que a ditou em línguas tão esquisitas? Se religião é coisa verdadeira mesmo, por que tantas?
Enfim, dizer que eu só acredito na Bíblia porque seu Autor é Deus e que eu sei que Deus existe porque tá escrito lá na Bíblia é apenas um círculo vicioso. Então, seja qual for a resposta que você der às perguntas acima, cuidado!, você pode estar cometendo sincretismo sem saber.