Templo Caboclo Pantera Negra

Fora da Tradição não há Iniciação

Por Mario Filho

 

Meus amigos,

 

Ando com o meu pavio cada vez mais curto. Quanto mais besteiras, idiotices, sandices, loucuras, absurdos, invencionices, charlatanismos etc. eu vejo, leio e ouço, mais esse pavio se encurta!

 

Daí eu me pergunto: o que está acontecendo para existir tudo isso? Confesso que não tenho uma resposta para dar, mas acredito que isso esteja acontecendo pela banalização do sagrado e pelo abandono da Tradição. Diariamente a Tradição é aviltada e esquecida, jogada no lixo como algo de “velhos” e “ultrapassados”. Sempre falo e escrevo, parafraseando o perenialista René Guénon, as seguintes frases: “Sem Tradição não há Iniciação”, “Fora da Tradição não há Iniciação” e “Sem a Tradição não há Salvação”; assim, é meu dever, como Sacerdote e defensor da Tradição, tentar esclarecer e evitar que isso se perpetue.

 

Além disso, há que pensarmos que enquanto há os pulhas que enganam, há os bobocas ou ingênuos de boa fé que são enganados. Como se diz por aí: “todos os dias nasce um trouxa e um esperto e eles vão se encontrar”. Ora, trouxa, neste mundo, todo mundo já foi, pelo menos uma vez; o duro é permanecer trouxa pelo resto da vida!

 

Contudo, onde quero chegar? O que quero dizer com essa introdução? É simples: quero evitar que as pessoas continuem sendo trouxas. Não se quer ou se deseja um monte de espertos, mas pessoas esclarecidas, de verdade!

 

Sabe-se que com a modernidade, o pensamento cartesiano de René Descartes (considerado o “pai” da filosofia moderna), o positivismo de Augusto Comte e o niilismo de Nietzsche, influenciaram e influenciam o modo como as ciências e a vida são vistas; influenciaram e influenciam, do mesmo modo e na mesma proporção, a visão das religiões, das religiosidades e dos religiosos.

 

Vamos, então, fazer algumas análises sobre as três correntes de pensamento filosófico que citei:

 

 

 

 

Assim, o evolucionismo mascarado nestas três correntes de pensamento filosófico vai apoiar a ideia de que “nada é verdadeiro, tudo é relativo”. Desta forma não haveria nenhum valor absoluto ou verdade, moral, beleza, religião, dogma; nada seria estável, apenas a evolução, esta sendo a única ideia absoluta. Ora isto é uma falácia: se nada é absoluto, a evolução também não o é! Assim, o evolucionismo não pode prosperar! Notem, então, que há um paradoxo insofismável.

 

Mas, o que tudo isso tem a ver com o que estou discutindo? Bem, não podemos negar, em nenhuma hipótese, a influência que o espiritismo kardecista exerceu e exerce nas manifestações religiosas afro-brasileiras. O espiritismo kardecista é, por excelência, evolucionista, sendo que a premissa básica e fundamental do espiritismo está ancorada na crença “da imortalidade da alma e na evolução espiritual” (AURELIANO, 2011, p. 31) e, de acordo com Alan Kardec, “todos os espíritos foram criados por Deus imperfeitos e a todos foi dado o livre-arbítrio para fazerem as escolhas necessárias a sua evolução espiritual” (id., ibid.).

 

Alan Kardec abusa da boa vontade de seus leitores! Como é possível a ele acusar Deus de fazer imperfeita a Sua criação por Seu bel-prazer? Então, segundo Kardec, podemos pensar que Deus, em um dia em que não tinha o que fazer, pensou assim: “Vou criar seres imperfeitos, para que eles evoluam à perfeição!” Deus, então, criou deliberadamente espíritos imperfeitos? Para quê? Ora, poupem-me!

 

Esta noção de evolucionismo presente na obra de Kardec, especialmente a evolução espiritual, está relacionada, além das teorias presentes em algumas religiões orientais, tais como o hinduísmo e o budismo (apesar de haver diferenças doutrinais e teológicas gritantes e até antagônicas entre elas e o espiritismo), às “teorias evolucionistas que marcaram as ciências naturais e humanas na segunda metade do século XIX” (AURELIANO, 2011, p. 32), especialmente as doutrinas positivista e cartesiana. “Assim, a negação do sobrenatural e da magia como formas de explicação para as manifestações dos espíritos, a exclusão do sagrado e dos ritos na conformação da prática da doutrina e o uso de experimentos para comprovar a comunicação com o mundo dos mortos seriam meios de fazer do espiritismo uma forma de conhecimento, destinada ao estudo das relações entre o mundo físico visível e o invisível, pautada no raciocínio lógico” (id., p. 33). Nada mais racional e positivista, não é mesmo? Assim, pela influência que as religiões afro-brasileiras sofrem do espiritismo, os seguidores dessas religiões acabam por criar teorias que se enquadram no pensamento positivista e cartesiano no qual o espiritismo kardecista se estriba.

 

Outra questão que não podemos nos esquecer é a influência que o ocultismo (abrangendo todo o movimento ocultista dos Séc. XVIII ao XX) e a teosofia de H. P. Blavatsky exerceram em religiões afro-brasileiras. Vemos, por exemplo, teorias do Marquês Saint-Yves d’Alveydre e de seu mestre Fabre d’Olivet, do abade Eliphas Levi e do médico Papus, entre outros, sendo adaptadas por alguns segmentos umbandistas, passando a fazer parte da doutrina deles. Outra influência que certos cultos afro-brasileiros sofreram foi da teurgia e da goetia, esta especialmente desenvolvida pelo poeta Aleister Crowley.

 

Assim, tudo ficou um balaio de gatos, sem levar em conta aquilo que a Tradição original, que deu início aos cultos afro-brasileiros, pregava, tornando-se esta Tradição algo ultrapassado e que teria que evoluir com o enxerto de inúmeras e estranhas teorias, totalmente diversas ao sentido original que aqueles cultos possuíam. Podemos observar, hoje, a Gnose de Samael Aun Weor e a teoria dos Mestres Ascensionados de H. P. Blavatsky (como a famosa chama violeta atribuída ao Conde de Saint Germain) se transformar em material doutrinário umbandista, por exemplo, havendo um rompimento total com aquilo que era proposto pelos primeiros praticantes dos cultos e religiões afro-brasileiras, especialmente a Macumba carioca e a Cabula (ambas extintas).

 

Sempre ouço: “Ah, as coisas evoluem” e isso me arrepia, irrita e apavora! Como assim!? As coisas evoluem!? O que isto quer dizer!? Respondo: nada, pois a Tradição é Tradição e não nos compete mudá-la ou contradizê-la, mas seguí-la. Se não concordamos com algo da Tradição a qual seguimos, devemos abandoná-la, devemos deixá-la de lado e sermos honestos conosco mesmos e com os outros e, principalmente, com a própria Tradição.

 

Exemplifico: se você é do Candomblé e não admite o sacrifício, palavra que vem da junção de duas palavras latinas sacrum (divino, sagrado) e officium (dever, serviço, cortesia, ocupação), ou seja, um “dever sagrado” com o qual não concorda, você deve abandonar o Candomblé. A mesma situação se deve à Kimbanda, se você não concorda com o sacrifício de animais não continue nela. Em ambos os casos você pode, muito bem, ir para a Umbanda que não sacrifica animais. Assim, você estará sendo verdadeiro e não abandonando a Tradição.

 

Outro problema, oriundo do abandono da Tradição é a proliferação de “Sacerdotes” e “Sacerdotisas” auto-declarados, que não passaram pela experiência e formação de um lugar de culto afro-brasileiro, que não possuem a preparação adequada e que resolvem abrir sua Casa, mesmo não tendo nenhuma condição para isso. Como não têm experiência, nem mesmo base para exercerem o sacerdócio, começam a enxertar coisas (principalmente daquilo que leem em livros de outros enxertadores ou que aprendem em cursos, inclusive à distância). Como inserem assuntos que agradam ao público ignorante e malemolente, este passa a seguí-lo, tendo-o como pessoa “iluminada” e capaz de conduzi-los por um caminho espiritual. Ledo engano! São cegos conduzidos por outro cego (sem nem uma bengalinha para ajudar!).

 

Muito pior são aqueles que se acreditam “avatares” e “mestres”, que se arvoram de um conhecimento iniciático que não possuem, pois não passaram por nenhum rito iniciatório e se propõem a introduzir pessoas naquilo em que não foram iniciados. Acreditam, piamente, que possuem uma “autorização do astral” para fazerem o que bem entendem. Isto é um acinte, que afronta totalmente a Tradição. Neste sentido, vamos ver o que diz alguns mandamentos de Ifá (um dos sistemas filosófico-religiosos mais completos do mundo) sobre o assunto (extraídos do Odú Ìká-Òfún):

 

1º. Não digam o que não sabem!

 

Interpretação: Um sacerdote não deve enganar ao seu semelhante acenando com conhecimentos que não possui. E jamais dizer o que não sabe, ou seja, passar ensinamentos incorretos ou que não tenham sido transmitidos pelos seus mestres e mais velhos ou adquiridos de formas legítimas. É necessário o conhecimento verdadeiro para a prática da verdadeira religião. Quem abusa da confiança do próximo, enganando-o e manipulando-o através da ignorância religiosa, sofrerá graves conseqüências pelos seus atos. A natureza se incumbirá de cobrar os erros cometidos e isto se refletirá em sua descendência espiritual.

 

2º. Não façam ritos que não saibam fazer!

 

Interpretação: Não se podem realizar rituais sem que se tenha investidura e conhecimento básico para realizá-los. Não se pode fazer aquilo que não sabe ou que não aprendeu.

 

(…)

 

12º. Não desrespeitem os mais velhos, a sabedoria está com eles.

 

Interpretação: Deve-se respeitar e tratar muito bem aos mais velhos, principalmente os mais antigos nos cultos e religiões afro-brasileiras. O respeito aos mais velhos é um dos principais fundamentos de uma religião onde, reconhecidamente, antiguidade é posto. Faltar-lhes com o devido respeito e atenção é como lhes retirar o bastão em que se apóiam. Aquele que sabe respeitar, acatar e amar aos seus mais velhos, sem dúvida receberá o mesmo tratamento quando também caminhar apoiado no seu próprio bastão. Os mais velhos, pelas experiências vividas, representam verdadeiros mananciais de sabedoria onde cada um deve procurar beber um pouco, saciando a sede de saber. São livros sagrados, cujas páginas devem ser lidas com paciência e carinho. Religiões que, durante séculos incontáveis, tiveram seus fundamentos transmitidos oralmente, valorizam sobremaneira, aqueles que são depositários destes conhecimentos. Um velho, por mais obtuso que possa parecer à primeira vista, sempre terá algo, obtido nos longos anos vividos, a ensinar. Devemos lembrar sempre que, se antiguidade é posto, saber é poder!

 

René Guénon (1946, p.9) nos esclarece sobre a iniciação e a tradição: “(…) a essência e a meta da iniciação são sempre e por toda parte as mesmas; só as modalidades diferem, por adaptação aos tempos e aos lugares; e agreguemos, em seguida, para que ninguém possa se equivocar, que essa adaptação, para ser legítima, não deve ser, nunca, uma ‘inovação’, quer dizer, o produto de uma fantasia individual qualquer, senão que, como a das formas tradicionais em geral, deve proceder sempre, em definitivo, de uma origem ‘não humana’, sem a qual não poderia haver realmente nem tradição, nem iniciação, mas algo dessas ‘paródias’ que encontramos tão frequentemente no mundo moderno, que não vêm de nada e que não conduzem a nada e que, assim, não representam verdadeiramente, se se pode dizer, mais que nada pura e simplesmente, quando não são instrumentos de algo muito pior”.

 

Como se pode ver, o afastamento da Tradição e do tradicional enfraquece a tudo e a todos. Se, por algum motivo, você não concorda com algo que se pratica em sua Casa espiritual ou que se faça em seus ritos e cerimônias, saia, encontre outro lugar tradicional, diga-se, para continuar seu trabalho. O que não se pode fazer é sair e inventar o seu próprio sistema e considerá-lo melhor e mais “evoluído” que o anterior e começar uma vida sacerdotal sem nenhum preparo para tanto. Diplomas de Sacerdote não habilitam ninguém a exercer o Sacerdócio. Somente anos de experiência e dedicação em uma Casa de tradição, aprendendo no dia a dia, habilitará alguém a ser, de verdade, um Sacerdote. Não seja mais um desses tantos pseudos Sacerdotes que existem por aí!

Referências

ARALDI, C. L.. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche. São Paulo: FFLCH/USP, Grupos de Estudos Nietzsche, Cadernos Nietzsche nº 5, p. 75-94, 1998.

AURELIANO, Waleska de Araújo. Espiritualidade, saúde e as artes de cura no contemporâneo. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2011.

GUENON, R.. Aperçus sur l’Initiation. Paris: Les Éditions Traditionnelles, 1946.

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