Templo Caboclo Pantera Negra

A mitologia africana para compreender a Umbanda

Por Mario Filho

 

Creio ser essencial que os Umbandistas conheçam a mitologia africana e não apenas a de origem Yorùbá (que cultua os Orixás), mas todas aquelas que se ligam ao “panteão” adotado na Umbanda, tais como as de origem Jeje e Angolana.

 

Infelizmente o que temos visto é a clara imposição daquilo que o Prof. Mário Teixeira de Sá Júnior chama de “embranquecimento umbandista”, ou seja, o afastamento proposital da Umbanda e dos umbandistas de suas origens africanas, de sua “negrura”, perpetrado, especialmente, pelos “intelectuais umbandistas” que foram influenciados pela discriminação racial no Brasil, especialmente entre o término da escravidão e o fim da Era Vargas.

 

Vamos discutir um pouco sobre esse assunto, analisando alguns fatos históricos:

 

Como se sabe, em 1941, a União Espírita da Umbanda no Brasil, primeiro órgão federativo de Umbanda em nosso país, realizou a 1ª Conferência sobre o Espiritismo da Umbanda, inclusive com a participação de Zélio Fernandino de Moraes (pois foi o Caboclo das Sete Encruzilhadas que determinou que se fizesse esse Congresso). Essa Conferência foi uma tentativa de definir e codificar a Umbanda como uma religião com direitos próprios. A conferência foi e ainda é conhecida por promover o distanciamento da Umbanda das religiões Afro-brasileiras existentes à época, tais como a Macumba, Cangerê, Cabula, entre outras. Os participantes concordaram em fazer dos trabalhos de Allan Kardec a doutrina umbandista. Lembro aos leitores que nessa Conferência estavam presentes todos os maiores expoentes da Umbanda no Brasil, além dos dirigentes das sete Casas fundadas pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas: Tenda Nossa Senhora da Guia, Tenda Nossa Senhora da Conceição, Tenda Santa Bárbara, Tenda São Pedro, Tenda Oxalá, Tenda São Jorge, e Tenda São Jerônimo.

 

Nesse esforço para legitimar a Umbanda como uma religião original e “evoluída” os participantes procuraram cortá-la, totalmente, de suas raízes africanas, concluindo que:

 

 

 

 

 

Os participantes se esforçaram, portanto, em associar a Umbanda com coisas totalmente distantes da África, como as tradições religiosas da Índia, representada especialmente por Swami Vivekananda, célebre místico hindu e idéias esotéricas europeias, destacando-se as difundidas pela Sociedade Teosófica, cuja maior expoente foi a escritora Helena Petrovna Blavatsky. Não podemos utilizar como doutrina umbandista o que Blavatsky pregava, pois o que ela dizia é uma deturpação de parte do hinduísmo, que deve ser estudado como um todo. A questão de raças, exemplificado por ela, não está em consonância com os maiores estudiosos do hinduísmo, que não falam dessa questão de raças superiores e inferiores como ela expõe. Essa é mais uma teoria eurocentrista e ocidental, que visa dar uma superioridade à raça branca, em detrimento de todas as outras raças. Alem disso, a citação de que a Umbanda teria se originado na Lemúria e vindo para Atlântida foi criada por influência de Blavatsky.

 

Acrescento, que houve, ainda, mais dois Congressos: o segundo realizado em 1961, organizado por Leopoldo Bettiol, Oswaldo Santos Lima e Dr. Armando Cavalcanti Bandeira, e o terceiro foi organizado e presidido pelo Dr. Armando Cavalcanti Bandeira. Todos os Congressos foram no Rio de Janeiro.

 

O Dr. Cavalcanti Bandeira, autor do livro “O que é a Umbanda”, refuta que a origem do nome Umbanda venha do sânscrito, mas sim da língua bantu. Afirma, também, que não quer que se “reafricanize” os rituais de Umbanda, pois diz que assim “ela voltará para trás” (mais uma vertente do racismo instituído pela doutrina kardecista aplicada no Brasil, que prega que as pessoas evoluem e, por isso, os negros seriam menos evoluídos).

 

Na questão do Candomblé, que alguns irmãos umbandistas abominam, podemos perceber que naquela época (a do 1º Congresso) o Candomblé estava centralizado no Nordeste do Brasil e era olhado como um estágio anterior da Umbanda, que havia se “desenvolvido”, ou melhor, “evoluído” no Sudeste, ou seja o Sudeste é melhor que o Nordeste, mais uma vez: bem racista, não é mesmo?

 

O Candomblé, segundo diziam, estava ainda marcado pela barbárie dos rituais africanos e assim é associado com a magia negra. Umbandistas passam a nomear a Umbanda que praticam como “umbanda pura”, “umbanda limpa”, “umbanda branca” e “umbanda da linha branca” no sentido de “magia branca”, tentando demarcar um contraponto entre a “magia negra”, ou seja, tudo aquilo que era praticado pelos negros, da “magia branca”, ou as práticas feitas pelos brancos. Os termos qualificativos da Umbanda cunhados por essas pessoas tinham por escopo contrastar-se com “magia negra” e “linha negra” que estavam associados com o mal, com o diabólico. Além disso, a divisão dos espíritos estabelecida desenhou a linha que separava aqueles da direita (os bons), representados pela Umbanda, e os espíritos da esquerda (os maus), representados pela magia negra ou por aquilo que não era considerado Umbanda “branca”, “pura”, “limpa” ou “de linha branca”. As únicas instâncias de identificação positiva da influência africana da Umbanda têm a ver com a visão de que a África é um continente heroico, formado por sofredores, portanto, os espíritos teriam como expiar seu karma; e os Pretos Velhos, que eram vistos como pessoas simples e humildes, mas espíritos muito evoluídos, pois haviam, de bom grado, vindo para o Brasil, como escravos, aceitado sua condição de escravizado e se humilhado perante os senhores de engenho.

 

Uma obra que tenho, que data do ano de 1953, chamada “Umbanda Sagrada e Divina”, escrita por Paulo Gomes de Oliveira, famoso jornalista carioca, que tinha um programa de rádio no qual falava sobre Umbanda e que dava palestras sobre ela desde 1930, diz:

 

“As tendas de Umbanda surgiram com a Umbanda evoluída [quer dizer, então, que havia uma outra Umbanda?, gn], ou seja, despida de muitas tradições obsoletas e revestida do Espírito evangélico cristão. O culto jêje-nagô [para o autor é uma coisa só] tem sua origem nas relações fetichistas sudanesas, e é esta coisa esquisita e estranha que se observa nos chamados Candomblés e Cangerês, onde a ignorância, a par de um enfermiço misticismo idólatra, estendeu seu nefasto império de superstições, enchendo a alma de seus adeptos de vibrações negativas, e dos complexos originários de crendices e vícios. Usam vestimentas esquisitas e bisonhos títulos. Praticam uma série de atos verdadeiramente chocantes e ridículos, revelando um acentuado desequilíbrio nervoso que somente afeta o delicado organismo psicológico. Atualmente admitem a mescla de todas as religiões, formando um ecletismo absurdo e nocivo. Os locais de trabalho estão revestidos de símbolos exclusivamente materiais e tudo respira uma atmosfera de idolatria áulica, perigosa aos destinos do Espírito. Acredito que, evoluindo através do estudo, venham a se transformar em Umbanda”.

 

As afirmações do autor são, nada mais, do que se imaginava do passado religioso africano: ignorância, fetichismo, vícios, desequilíbrio nervoso, idolatria. Infelizmente, esse texto reflete muito bem o pensamento que, hoje, após mais de cinqüenta anos, muitos pessoas, inclusive umbandistas têm.

 

Por essas e por outras não podemos julgar os Irmãos que denigrem os ensinamentos contidos no Candomblé, achando-os atrasados, falhos, sem nenhuma base espiritual; afinal eles aprenderam assim, e assim transmitem aos seus discípulos e seguidores.

 

É nossa obrigação afastar esse tipo de pensamento dos umbandistas. Não podemos aceitar que digam que essa ou aquela prática é fetichista, atrasada, “magia negra” etc, sem a conhecê-la muito bem. Acusar os outros é fácil, difícil é ver os próprios erros!

 

Voltando à mitologia, podemos dizer que a mitologia africana se assemelha em muito à mitologia grega, com seus casos amorosos, traições, brigas, ciúmes, usurpação do poder etc, pois não se imagina termos divindades tão longe de nós, que sejam tão díspares dos sentimentos humanos. Elas, assim, têm que se aproximar dos seres humanos: precisam odiar, amar, pensar, sentir, enfim, serem humanos como nós. Ora, leitor, você realmente acredita que Ògún desceu do céu em uma corrente, e abriu caminho com seu facão para os demais Orixás poderem andar na Terra? Você acredita que Obà cortou sua orelha para cozinhá-la para Ṣàngó (Xangô), pois Ọ̀ṣun (Oxum) lhe disse que este adorava um ensopado de orelha? Você acredita que Ògún brigou com Ṣàngó por causa de Ọya (Iansã) e ficaram inimigos para sempre? Meus Irmãos isso tudo são histórias para nos fazer pensar nas coisas. São mitos. O mito é sempre uma representação coletiva, transmitida aos descendentes para explicar o mundo. Ele é sentido e vivido. Circunscreve um acontecimento, narra uma criação, diz do que não existia e como passou a existir. Segundo Goethe em citação de Campbell (1997), os mitos são as relações permanentes da vida. Fala sempre das relações humanas e não é nem poderia ser lógico, pois se presta a todas as interpretações.

 

Moyers no livro de J. Campbell (O Poder do Mito) diz:

Mitos são histórias de nossa busca de verdade, de sentido, de significação, através dos tempos (…) Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir o que somos.

Para Jung, mito é a conscientização de arquétipos do inconsciente coletivo, uma união de consciente e inconsciente coletivo, assim como as formas através das quais o inconsciente se manifesta. O mito é aquele que remete, o rito é sua ação. Na mitologia grega podemos observar o relacionamento dos mitos sobre curas fantásticas e dons cedidos pelos deuses, além da eterna busca de contato com estes por parte do povo. Visitando os templos, fazendo oferendas, erguendo altares e consultando os sacerdotes, estes sim que – em transe – teriam um contato direto com os deuses.1

 

O Dr. Bernardo de Gregório diz: “Na Antiguidade o ser humano não conseguia explicar a Natureza e os fenômenos naturais, então, dava nomes ao que não podia explicar e passava a considerar os fenômenos como deuses. O trovão inspirava um deus, a chuva outro. O céu era um deus pai e a terra, uma deusa mãe e os demais seres, seus filhos. Criava, a partir do Inconsciente, histórias e aventuras que explicavam de forma poética e profunda o mundo que o rodeava. Essas ‘histórias divinas’ eram passadas de geração a geração e adquiriam um aspecto religioso, tornando-se mitos ao assumirem um caráter atemporal e eterno, por dizerem respeito aos conflitos e anseios de qualquer ser humano de qualquer tempo ou local”. Vemos, portanto, que a experiência mítica é característica de todos os povos e culturas. É a forma de explicarmos a religião e o sentimento religioso. Dá-nos ferramentas para entender e conceituar nossa experiência religiosa e justificar nossas práticas. Assim deve caminhar a Umbanda!

 

Referências

  • 1 – Cf. AMORIM, Hela. Do Politeísmo da Mitologia Grega ao Monoteísmo das Religiões Judaico-Cristãs Fundamentadas pelo Conceito de Arquétipo Junguiano. BOLETIM CLÍNICO PUC/SP – número 19 – novembro/2004.
  • Este texto foi reescrito em 26/06/2013, modificando o original de 2011.
  • BANDEIRA, Armando Cavalcanti. O que é a Umbanda. Ed. Eco, Rio de Janeiro: 1972.
  • CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Ed. Palas Athena. São Paulo: 1999.
  • Jung, C. G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: ed.Vozes. 1995.
  • OLIVEIRA, Paulo Gomes de Oliveira. Umbanda Sagrada e Divina. Ed. Aurora, Rio de Janeiro: 1953.
  • SÁ JR., Mário Teixeira de. A invenção da alva nação umbandista. UFMS. Dourados: 2004.

 

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